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blog O cinema Sallva, julho 2021, Autoria

A noção de autor no cinema é questionável. Se nos outros campos artísticos, o autor é aquele que produz a obra, por exemplo, aquele que escreve um livro ou que compõe uma partitura ou pinta um quadro, no cinema, a criação estritamente individual é rara pelo fatos dos filmes serem uma arte coletiva. Um longa de ficção realizado em estúdio supõe uma equipe, mas isso também acontece com o documentário de pequeno orçamento. A noção de autor de filme, portanto, demorou a aparecer historicamente e continua a ser discutível conforme o país e os modos de produção.

Uma marca dos filmes de Woody Allen é o uso de créditos iniciais com músicas de jazz e swing, assim como a familiar persona de intelectual existencialista angustiado que ele costuma exercer nos filmes que escreve e dirige, como é o caso de Crimes e Pecados (EUA, 1989).



Por analogia à arte teatral, considerou-se inicialmente que o autor do filme era o autor do roteiro, e o diretor, um mero executante técnico. No período entre 1920 e 1960, especialmente emHollywood, era o próprio estúdio, na qualidade de entidade coletiva e imagem de marca, que podia ser considerado instância responsável pela criação da obra.

A noção de autor tem ligações estreitas com as relações de forças entre o cineasta e as instâncias de produção e de difusão. A primeira vanguarda francesa, a Nouvelle Vague, oriunda no fim dos anos 1950, foi a primeira demonstração de luta dos intelectuais e dos artistas pelo reconhecimento do filme como obra de arte, expressão pessoal e cosmovisão do criador. Se nos ativermos à primeira definição do termo autoria: "a pessoa que é a causa primeira, que está na origem de um produto ou de uma obra, sobre os quais se tem um direito", o autor identifica-se com o produtor, e, por isso, na maioria das legislações que regem a propriedade dos filmes, os diretos de autor cabem à produtora; os roteiristas e o diretor têm apenas direitos morais e simbólicos. Basta notar ps casos de premiação de melhor filme no Oscar, quando não o diretor, e sim o produtor recebe a estatueta. A liberdade de criação do cinema é sempre relativa, sendo paradoxal afirmar uma paternidade da obra ou reconhecer a assinatura pessoal no contexto de uma produção padronizada.



Martin Scorsese emergiu da Nova Hollywood assumindo sua autoralidade com temas recorrentes sobre marginais do escalão intermediário do crime organizado. Um exemplo é o filme Caminhos Perigosos (EUA, 1973), que apresenta outra marca do diretor: o emprego de sua própria voz na narração off do protagonista. A cena inaugural de A Cor do Dinheiro (1986) é uma demonstração da autoria de Scorsese.

O status de autor é problemático por outra razão. O filme é um meio de expressão heterogêneo que combina várias matérias: a imagem, os diálogos, a música, a montagem etc. Privilegiar apenas a direção é, portanto, uma decisão discutível. Em muitos casos, o diretor atém-se a uma simples execução e não tem responsabilidade e nem iniciativa na escolha do roteiro, dos diálogos, dos atores, da edição, da trilha sonora etc. É comum que filmes ganhem notoriedade pela parte criativa do roteirista ou do ator principal.



David Lynch é conhecido pela recorrência por temas sombrios, estranhos, com cenas perturbadoras de suspense quase onírico. Em Veludo Azul (EUA, 1986), temos a cena em que Jeffrey (Kyle MacLachlan), escondido no armário de Dorothy (Isabella Rossellini), testemunha Frank (Dennis Hopper) estuprar a vítima em um roupão de veludo azul, numa clássica e notável demonstração da audácia de Lynch.


Gus van Sant é outra referência de autoralidade por não reprimir seus impulsos artísticos, equilibrando obras entre vanguarda e comercial. O longa Gerry (EUA, 2003) é protagonizado por apenas dois atores perdidos num deserto com diversas sequências em planos abertos. A experiência de assistir é cansativa e maçante, dando ao longa a verossimilhança semelhante ao contexto dos personagens.



Do ponto de vista teórico, é impossível concentrar a figura do autor exclusivamente na figura de diretor. Ele é uma instância abstrata, a um só tempo múltipla e fragmentária. O autor de um filme, em termos semióticos, também é um "mostrador de imagens", um "enunciador" e um sujeito do discurso fílmico.


4 Filmes de Autor

blog O Cinema Sallva, julho 2021, Autoria

1. Caminhos Perigosos, Martin Scorsese (EUA, 1973)

2. Veludo Azul, David Lynch (EUA, 1986)

3. Crimes e Pecados, Woody Allen (EUA, 1989)

4. Gerry, Gus Van Sant (EUA, 2003)

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