O panorama histórico do cinema brasileiro abrange desde filmes realizados à maneira clássica, como os da Vera Cruz, chanchadas e boa parte do que ainda hoje é lançado comercialmente, até linhas mais preocupadas com a originalidade e a autenticidade, por exemplo, Cinema Novo, Cinema Marginal e alguns cineastas independentes, como Mário Peixoto e Walter Hugo Khouri. No entanto, há um contingente de realizações, cuja caracterização não parece se ajustar a nenhuma das precedentes, constatável em três filmes realizados na cidade de São Paulo durante a segunda metade dos anos 1980: Cidade Oculta (BRA, 1986), dirigido por Chico Botelho, Anjos da Noite (BRA, 1987), dirigido por Wilson Barros e A Dama do Cine Shangai (BRA, 1988), com direção de Guilherme de Almeida Prado.
Conhecidos como a "trilogia paulistana da noite", esses filmes apresentam uma composição audiovisual e narrativa que diverge rigorosamente do que se fez no Brasil pelo menos até o final da década de 1970. A profusão de elementos semelhantes entre eles enalteceu duas características da trilogia: em primeiro lugar, o irrealismo, como se os filmes renunciassem tanto à verossimilhança do cinema clássico, isto é, à preocupação com o parecer real, quanto ao realismo que, sob os mais variados matizes, marcou a mais elogiada parcela do cinema nacional; em segundo lugar, a diversas referências a
obras cinematográficas do passado, como o cinema noir e os musicais americanos, sem o caráter crítico que marcou as paródias do Cinema Marginal. No meu podcast O Cinema Sallva falei mais sobre o neon-realismo brasileiro:
O crítico Jean-Claude Bernardet publicou em 1985, antes do lançamento da trilogia supracitada, o ensaio "Os Jovens Paulistas" com base em alguns curtas-metragens e dois longas da primeira metade dos anos 1980. No ensaio, Bernardet esboça as características que viriam a ser típicas de uma linha cinematográfica que se disseminaria nos anos seguintes no Brasil.
Cidade Oculta (BRA, 1986) foi o primeiro longa-metragem paulistano a assumir a caracterização por ele descrita: a duplicidade estrutural (ambiguidade), o artificialismo, o destaque ao neon, a cidade de São Paulo deslumbrante, a predominância de cenas noturnas, a luminosidade contrastada, o não engajamento político e a oscilação entre cinema de autor e cinema de público.
Uma das características do longa é a falta de centralização dos protagonistas por meio de inserts, que são utilizados com um efeito dispersivo em relação ao eixo narrativo baseado nos personagens. De tempos em tempos irrompem planos da cidade e do metrô, quais não se conectam nem com a cena anterior nem com a posterior.
Destaca-se a ausência de densidade psicológica dos personangens: Japa (Celso Saiki) é amigo, Ratão (Cláudio Mamberti) é mau caráter, Shirley (Carla Camurati) independente e sexy, Anjo (Arrigo Barnabé) é inocente e irascível. São personagens estritamente planas, cuja matriz parece advir de HQs, local por excelência de caracterizações simplistas.
Há também um certo caráter indefinido nas cenas em que Shirley joga num local indeterminado, numa máquina que lhe parece dar a visão do que acontece em espaços distantes. Nem mesmo o final do filme se esclarece o que seria essa máquina de tarô.
A trilogia do Neon-realismo brasileiro é uma tendência estilística pouco examinada a fundo na cinematografia brasileira, em especial porque anos depois, quando já proliferavam filmes que não mais se ajustavam às categorias de clássico e moderno, a crítica voltou as costas a eles, preferindo ignorá-los. O livro Cinema Brasileiro Pós-Moderno: o Neon-realismo, de Renato Luiz Pucci Jr., faz uma análise bem detalhada desses filmes e do contexto cinematográfico no Brasil dos anos 1980.
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