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Autoria


A noção de autor no cinema é e sempre foi questionável. Se nos outros campos artísticos, o autor é aquele que produz a obra, escreve um livro, compõe uma partitura, pinta um quadro, por exemplo, no cinema a criação estritamente individual é rara por ser uma arte coletiva. Um filme de ficção realizado em estúdio supõe uma equipe, mas isso também acontece com o documentário de pequeno orçamento. A noção de autor de filme, portanto, demorou a aparecer historicamente e continua a ser discutível conforme o país e os modos de produção.

Os filmes de Woody Allen, por exemplo, é marcado pelo uso dos créditos iniciais ao som de tradicionais músicas de jazz e swing, quais imediatamente associamos a Allen, assim como a familiar persona de intelectual existencialista angustiado que ele costuma exercer nos filmes que escreve e dirige, como é o caso de Crimes e Pecados (EUA, 1989).

Por analogia à arte teatral, considerou-se inicialmente que o autor do filme era o autor do roteiro, e o diretor, um mero executante técnico. No âmbito da produção de estúdios, em Hollywood (1920-1960), era o próprio estúdio, na qualidade de entidade coletiva e imagem de marca, que podia ser considerado instância responsável pela criação da obra.

A noção de autor tem ligações estreitas com as relações de forças entre o cineasta e as instâncias de produção e de difusão. A primeira vanguarda francesa, a Nouvelle Vague, oriunda no fim dos anos 1950, foi a primeira demonstração de luta dos intelectuais e dos artistas pelo reconhecimento do filme como obra de arte, expressão pessoal, visão de mundo própria a um criador. Se nos ativermos à primeira definição do termo: "a pessoa que é a causa primeira, que está na origem de um produto ou de uma obra, sobre os quais se tem um direito", o autor identifica-se com o produtor, e, por isso, na maioria das legislações que regem a propriedade dos filmes, os diretos de autor cabem à produtora; os roteiristas e o diretor têm apenas direitos morais ou simbólicos. Veja os casos de premiação de melhor filme no Oscar, quando não o diretor, e sim o produtor recebe a estatueta. A liberdade de criação do cinema é sempre muito relativa, sendo portanto paradoxal afirmar sua paternidade da obra ou reconhecer sua assinatura pessoal no contexto de uma produção padronizada.

Martin Scorsese emergiu da Nova Hollywood assumindo sua autoralidade com temas recorrentes a partir do ponto de vista de marginais do escalão intermediário do crime organizado como ocorre em Caminhos Perigosos (EUA, 1973), seja também através de recursos estilísticos como o emprego de sua própria voz para narração feita pelo personagem. A cena inaugural de A Cor do Dinheiro (1986), cujo trecho você assistir aqui, é uma demonstração desse tipo de autoralidade.

O status de autor é ainda problemático por outra razão. O filme é um meio de expressão heterogêneo que combina várias matérias: a imagem, os diálogos, a música, a montagem etc. Privilegiar apenas a direção é, portanto, uma decisão discutível. Em muitos casos, o diretor atém-se a uma simples execução e não tem responsabilidade nem iniciativa alguma na escolha do roteiro, dos diálogos, dos atores, da montagem, da música etc. Existem muitos filmes caracterizados pela parte criativa do roteirista ou até mesmo do ator principal.

David Lynch é conhecido pela recorrência por temas sombrios, estranhos, com cenas perturbadoras de suspense quase onírico. Em Veludo Azul (EUA, 1986), temos a cena em que Jeffrey (Kyle MacLachlan), escondido no armário de Dorothy (Isabella Rossellini), testemunha Frank (Dennis Hopper) estuprar a vítima em um roupão de veludo azul, numa clássica e notável demonstração da audácia de Lynch. Gus van Sant é outra referência de autoralidade no sentido de jamais reprimir seus impulsos artísticos, até mesmo de vanguarda, para tornar o filme mais acessível e com um apelo mais comercial. O longa Gerry (EUA, 2003), é protagonizado por apenas dois atores perdidos num deserto com diversas sequências em planos abertos tornando a experiência de assistir cansativa e maçante, talvez, na intenção de dar verossimilhança à própria vivência de se estar perdido.

De um ponto de vista estritamente teórico, é impossível concentrar a figura do autor na pessoa do diretor. É uma instância abstrata, a um só tempo múltipla e fragmentária. O autor de um filme é, portanto, em termos semióticos, um "mostrador de imagens", um "enunciador", o sujeito do discurso fílmico.


4 Filmes de Autor

1. Caminhos Perigosos, Martin Scorsese (EUA, 1973)

2. Veludo Azul, David Lynch (EUA, 1986)

3. Crimes e Pecados, Woody Allen (EUA, 1989)

4. Gerry, Gus Van Sant (EUA, 2003)

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