Eduardo Coutinho começou sua vida no cinema quando fez um curso em um Centro de Estudos Cinematográficos que havia em São Paulo nos anos 1950. Depois passou pelo Seminário de Cinema do Museu de Arte Moderna, foi para a Europa e lá arranjou uma bolsa com o governo francês, onde fez o curso do Idhec (Institut des Hautes Études Cinématographiques) em 1958. Voltou ao Brasil em fim de 1960, quando teve uma experiência em teatro ligado ao CPC (Centro Popular de Cultura) paulista. No fim de 1961 ele mudou-se definitivamente para o Rio de Janeiro para ser gerente de produção em Cinco Vezes Favela – um filme feito pelo CPC da UNE e dirigido por cinco cineastas, entre eles Cacá Diegues e Leon Hirszman. A produção seguinte do CPC seria Cabra marcado para morrer, filme para qual fez roteiro e direção.
A obra seria baseada na vida do João Pedro Teixeira, um líder camponês na época das Ligas Camponesas e que morreu assassinado em abril de 1962. Coutinho queria fazer um filme sobre o Nordeste antes mesmo de conhecê-lo. O filme seria inspirado nos poemas sobre temática nordestina "Morte e Vida Severina" e "O Cão Sem Plumas", de João Cabral de Melo Neto. O autor havia cedido os direitos, contudo, uma semana depois, atemorizado talvez pelo que naquela época se dizia do CPC da UNE, o autor desautorizou a licença e Coutinho ficou sem rumo. Ele foi obrigado, então, a mudar de ideia. Falamos sobre o filme no nosso podcast O Cinema Sallva, ouça abaixo:
Àquela altura Coutinho pensou em filmar a vida de João Pedro Teixeira baseado em sua vida real a partir de documentos. O filme teria um estilo semidocumentário com história, mas sem atores profissionais, interpretada só por camponeses. O argumento foi aceito pela direção do CPC, que depois acertou uma coprodução com o MCP (Movimento de Cultura Popular) de Pernambuco. Em fevereiro de 1964 as filmagens começaram em Recife e na Paraíba. A filmagem ia ser em Sapé, local do crime, porém dias antes houve um conflito de terras entre camponeses e capangas e a região ficou com um regime de vigilância militar, logo, impossível de filmar. Então foi transferido para Vitória de Santo Antão e no engenho Galiléia, onde havia condições não totalmente ideais, mas semelhantes àquelas de Sapé. Os atores eram todos camponeses da região, na maioria gente que morava em Galiléia. A atriz principal era Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro, que fazia o seu próprio papel. O papel de João Pedro era feito por um homem do campo que morava num subúrbio de Vitória, escolhido depois de muita dificuldade.
As filmagens foram interrompidas um mês depois de iniciadas em virtude do Golpe de 1964. Houve prisões de pessoas da equipe – que depois foram soltas –, e todo o equipamento técnico foi apreendido. Perdeu-se praticamente tudo: fotos de still, versões dos roteiros, rolos de filmes etc. Um roteiro foi recuperado um ano depois, mas ainda não era o roteiro que fora corrigido in loco. Além disso, o filme já se diferenciava do roteiro porque havia muita colaboração do linguajar local. Embora algumas sequências tenham sido filmadas, o material era inútil, pois feito com som-guia, os diálogos não poderiam ser reconstituídos.Então o filme se tornou impossível porque vivia de uma realidade que acabou em 31 de março de 1964.
Vinte anos depois, Coutinho previa voltar ao Cabra Marcado para Morrer fazendo o filme em dois meses, que seria o exato período de férias prolongas que conseguiria tirar na TV Globo, onde trabalhava desde 1975. O plano de filmagem era simples: reatar o contato com as pessoas, saber se elas estavam vivas, voltar para o Rio, pegar a equipe, viajar e filmar. E deu certo: o diretor voltou ao Rio com tudo filmado três dias antes de se completarem os dois meses. A sorte ajudou muito. Na primeira semana de filmagem a equipe esteve em Galileia e foi possível reencontrar todas as pessoas. A equipe se deslocou a uma região próxima e encontrou mais três que tinham mudado de cidade. A primeira pessoa filmada foi Elizabeth Teixeira. Ela nem sabia que a equipe estava chegando lá para filmar. As gravações com ela duraram três dias e foram tão profícuas que Coutinho já sentia que seria um filme fortíssimo.
Embora críticos classifiquem Cabra Marcado para Morrer como uma "boa reportagem", a obra tem um força baseada no fato de que nenhum filme foi igual a ele. Respondia ao fato de ser único, de ter sido feito em condições únicas e de mostrar isso na tela. Era uma coisa nova para os anos 1980, um filme que se mostra como é e como era anos antes. Não se trata de ser genial. Sua importância se deve ao fato de ter uma história única. Você encontra essa e outras peculiaridades sobre a filmografia de Eduardo Coutinho no livro homônimo em homenagem ao diretor reunindo dois ensaios, dez entrevistas e 39 textos escritos por Coutinho no Jornal do Brasil nos anos 1970.